15.2.13

FACTURAS: O RETRATO DAS NOSSAS VIDAS


Devo esclarecer que esta legislação não é totalmente nova. Já em 1988, se legislou neste sentido, com o mesmo objectivo. Ninguém ligou nenhuma, tanto mais que a informática dava os primeiros passos ao nível do armazenamento de dados. Para se ter uma ideia: uma curta memória info em ‘disco’ precisava de um armário de equipamento de dimensões consideráveis e que custava, então, uma fortuna. Hoje, tudo se reduz a milímetros e a capacidade e velocidade de armazenamento de dados, bem como de pesquisa dos mesmos encontra-se à distância de um 'click' num qualquer terminal, desde que esteja ligado em rede. Mais ainda podemos pesquisar dados por um número quase ilimitado de grupos, como o socioeconómico, sociocultural, ou por cadastro criminal, etc..
A constituição de base de dados só se faz uma vez e depois limita-se a actualizar as informações ou a obtê-las de forma continuada e tudo em rede como se tivéssemos um circuito virtual, onde milhares de dados se cruzam num ponto e que os filtra em milésimos de segundo. Tudo isto acontece por uma múltipla cadeia de aplicações informáticas também elas cada vez mais compatíveis umas com as outras.
Em máximo esta legislação que nos obriga a pedir factura, nem que seja por um pacote de rebuçados e porque se pretende que contenham as nossas identificações fiscais (número de contribuinte, entenda-se), permitirá seguir os passos de um cidadão qualquer num determinado dia.
Por exemplo, verificar quantas vezes o Sr. Manuel o Dr. Ricardo ou o engº Meireles entraram num estabelecimento de comércio ou de prestação de serviços, num determinado dia… Cruzando com outros elementos como os constantes no cartão do cidadão e nos ‘Censos 2011’, pode-se simular o que fizeram estes três senhores durante esse dia.
Imagine-se agora multiplicar estas visualizações durante os 22 dias de trabalho de um mês?
Seguramente alicerçam o perfil destes cidadãos.
E esta mecânica aparentemente complexa, do tipo ‘teia de aranha’ nem precisa de recursos humanos para ser realizada pelo menos até às etapas intermédias.
As aplicações informáticas processam estes dados de centenas de milhares de portugueses em simultâneo.
Vivemos na era digital em todas as frentes. Desenganem-se aqueles que julgam ser apenas nos veículos da comunicação multimédia. Aliás, hoje a visualização dos nossos países, cidades, bairros, ruas e casas também se encontra à distância de segundos: Todos acedemos a imagens de satélite mais ou menos actualizadas consoante estivermos dispostos a pagar ou não pelo serviço ‘google hearth’.
Globalizámos e banalizámos as nossas próprias vidas. Mesmo a nossa intimidade. Tudo em nome da aproximação dos povos e de ultrapassar obstáculos e paradigmas geracionais. Vejam o que se publica nas redes sociais: os textos e as imagens das nossas glórias, insucessos, tristezas, anseios, medos, doenças, momentos de fulgor, alegrias, ódios… por mais íntimos que sejam. Está na génese humana o gosto pela exposição, ainda que em determinadas culturas isso seja pouco relevante do ponto de vista individual.
E perceba-se que nem a Lei de Protecção de Dados Pessoais, que já inclui as directivas comunitárias, nos salvará desta ‘vigilância’, sempre mais apertada.
Ainda assim, não deixa de ser engraçado o que poderemos ler no portal da CNPDP, Comissão Nacional de Protecção de Dados: «A legislação aprovada, que transpõe para o direito interno as directivas comunitárias 95/46/CE e 97/66/CE, traduz-se numa maior protecção dos dados pessoais e, por isso, num reforço dos direitos e garantias dos cidadãos, de acordo com as alterações introduzidas no artº 35º da CRP na última revisão constitucional. O texto aprovado sobre a Protecção de Dados Pessoais prevê o alargamento da aplicação do regime de protecção de dados pessoais aos ficheiros manuais e à videovigilância; delimita as condições de processamento da informação para fins exclusivamente jornalísticos ou de expressão artística ou literária; cria um maior equilíbrio quanto à forma de legalização dos ficheiros das entidades públicas e privadas, agilizando o processo de legalização do tratamento de dados pessoais; estabelece as condições de interconexão de ficheiros.».
O Mundo deu uma cambalhota.
Hoje, sabemos que o poder económico administra o poder político e religioso e que isso é transversal à maioria dos países ricos, pobres e em vias de empobrecimento. Apesar deste reconhecimento, não há espaço para a inversão dos valores. Serão sempre os mais fortes a imporem-se aos mais frágeis. A fé é receita que alivia, mas não nos garante o fim da ganância e do individualismo, já que ela – a fé – também é entusiasta pelo poder.
É precisamente neste espaço que nos defrontamos com a legislação que nos obriga a pedir factura por tudo o que possamos adquirir, produtos ou serviços, tanto mais que isso não será possível fazer na ‘distribuição mecanizada’ como nas máquinas do tabaco ou de bebidas e confeitos que se encontram nos mais variados espaços, mesmo dentro de prestadoras do serviço público.

Sem comentários: