17.5.13

Adopção

Sobre a recente legislação sobre a adopção, em que se debateu a igualdade de direitos de pessoas adultas, com as devidas reservas, sem juízos de valor, fica a questão:

Onde ficaram as crianças neste processo todo?

Assim, para podermos todos reflectir, ficam algumas ideias técnicas sobre o assunto.

 

Eu e o Outro


      O estudo da relação de objecto na evolução e na regressão, seja esta na doença ou na cura analítica, vem trazer o necessário relevo à consideração do objecto, das suas qualidades intrínsecas e dos modos explícitos de agir, como agente da maior importância na maturação pulsional e na estruturação do Eu.  É todo o problema das introjecções e identificações que dependem, por um lado, da constituição e desenvolvimento autónomos do sujeito, por outro, daquilo que o objecto é e fornece ao sujeito.

Para além da imagem que o sujeito tem de si ao se reconhecer, importa ainda a imagem que o outro lhe dá, como o define, não só pelo facto de que o outro é um espelho vivo, criador e transformador, como também por captação e captura da identidade atribuída.  De acordo com Coimbra de Matos, estamos então perante a identificação imagoico-imagética. 

Esta identificação é muito importante, na medida em que o Homem é um animal narcíseo, que se vê ao espelho, e este reflecte aquilo que tem perante si.  Desta forma, a imagem que transmite pode ser promotora de evolução (desenvolutiva) e sanígena (produtora de saúde) se a atribuição for correcta, como pelo contrário pode ser obstrutiva e patogénica, desviante ou mesmo alienante quando distorce a verdade do sujeito, proveniente de uma má/insuficiente leitura/interpretação e por insuficiência do seu estado e dinamismo mental, ou por intenção malévola, paranóide ou rejeitante.  Então, o sujeito, alvo de projecções, só pode construir uma identidade falsa. 

Este tipo de identificação deriva das mensagens e afluxos inconscientes transmitidos pela projecção identificativa do objecto identificador, do objecto que reconhece.  A identificação imagoico-imagética, leva à constituição do núcleo primário da identidade, à primeira cristalização identificatória, a identidade psíquica básica.  A identificação imagoico-imagética é uma identificação introjectiva precoce, proveniente da interacção e da inter-relação com o objecto primário.

Na linha de pensamento de M.  Klein estamos perante uma sucessão temporal de introjecções positivas do bom seio, ou na opinião de Coimbra de Matos o bom objecto parcial primitivo, que permite ao sujeito a construção da imagem de si próprio, o próprio Eu, a identidade.  A esta sucessão de introjecções, Bouvet chamou-lhes de introjecções conservadoras.  Por seu lado, Coimbra de Matos considera mais correcto a designação de construtivas na medida em que destinam a construir algo.

É a sucessão de introjecções que leva à construção da identidade.  Para tal, a construção do bom objecto interno e total é uma importante fase no decorrer da evolução psicológica.  É com uma constituição deste objecto interno total, caminhando em paralelo com a estruturação de um Eu coerente e com limites bem definidos, em associação com uma estima de si suficiente, segura, e plenamente assumida (um self isento de feridas narcísicas abertas) que se atinge a relação de objecto genital, forma essa de o sujeito se relacionar com o mundo que o circunda sem uma dependência excessiva dos objectos reais e actuais e sem o risco iminente da perda de individualidade em face dos abalos ou rupturas no seu sistema relacional concreto.  Caso contrário, e do ponto de vista da compreensão psicanalítica, a inconstância da relação de objecto, pelo facto de não existir um objecto interno suficientemente estável, será o prenúncio e assistiremos a uma intolerância à frustração e à incapacidade de suportar a ansiedade, essência da passagem ao acto.  O dinamismo psíquico do sujeito será caracterizado pela não elaboração mental da frustração (patologia do imaginário) imposta pela realidade.  Aquele objecto interno, que se pretende contentor (Winnicott), tranquilizante (Bion), tomará uma tonalidade emocional altamente persecutória, constantemente projectado e perseguido.  A falha na interiorização desse mesmo objecto interno condiciona um sentimento de depressão inconsciente, somente compensada pelos comportamentos de instabilidade de fuga para a frente e, nos melhores casos, pela recriação e procura dos objectos como um prolongamento e acabamento do bom objecto interno, mas parcial.

Por recepção no interior das formas visíveis e comportamentos observados o sujeito constrói a sua própria imagem, designando-se como identificação idiomórfica, na qual, e por aprendizagem directa, o sujeito tem a possibilidade de se mostrar e mostrar o que faz.  Este tipo de identificação, que cedo se iniciou, mantém-se pela vida fora, considerada mesmo como o retalho mais nobre, genuíno e fiel da identidade do sujeito.  Todavia, é na fase da adolescência que se dão as modificações mais importantes ao nível da identidade do próprio.  A identidade idiomórfica acentua-se, são os valores, os ideais, a aprendizagem do sujeito que o guiam e determinam a sua identidade.  Estes traços pessoais, associados a uma educação-relação, convenientemente limitada, que promova e facilite a autêntica expressão do self deixa espaço para a experiência, para o erro, para as frustrações e também para o sucesso, permitindo ao sujeito afirmar-se.

Numa terceira fase do percurso da construção da identidade, se assim o quiser-mos considerar, surge a identificação alotriomórfica, a qual e de acordo com Coimbra de Matos consiste na identificação ao modelo.  É o objecto eleito, o objecto amado, mas também invejado, sob a perspectiva de desejar ser, intojectando os seus atributos, quer sejam estes reais ou imaginários, o Eu Ideal (Lussier).  Esta é a identificação mais conhecida e a única que a psicanálise clássica e a psicopatologia dinâmica tradicional descrevem, sendo, de acordo com Coimbra de Matos, como uma visão muito reducionista, uma vez que limita o processo de construção da identidade à simples identificação ao modelo, bem como, pelo facto de subestimar a capacidade diferencial e diferenciadora, e acima de tudo criativa de cada sujeito. 

Importa agora, não cair no erro de colocar estes tipos de identificação num espaço limitado, circunscrito, isolado e independente, mas sim intricá-los.  Se a identificação imagoico-imagética é muito importante e acompanha-nos para toda a vida, a identificação alotriomórfica também não é menos importante, na medida em que pela cópia do modelo existem casos muito felizes, mas tem o seu reverso, o Ego pode “vestir” várias peles no decorrer do seu percurso criativo.

Esta situação ocorre, não somente por uma cópia do modelo menos feliz, como também pelo facto de não se respeitar, pela não consideração da individualidade própria da criança.  Referimo-nos então, às mães que não se preocupam e não se inquietam com a necessidade de evolução original do filho, não se interrogando sobre os seus desejos, próprios e genuínos, prejudicando seriamente a sua individuação (Mahler) e a formação de uma individualidade própria, originando desta forma a constituição de um falso self (Winnicott), a qual podemos designar como uma extensão da identidade das figuras parentais, reflexo das falhas narcísicas destes, proporcionando ao sujeito uma vivência emocional de frustração contínua, que se converte, frequentemente, e mais tarde no período da adolescência, numa atitude de desprezo e violência perante o modelo e a sociedade.

Numa vertente positiva, e entendamos o Ego como um actor na procura do seu melhor argumento, permite-lhe apelar ao seu imaginário e procurar ser melhor do que aquele que lhe serviu de modelo, em suma, dá-lhe espaço para a criatividade.  Na vertente negativa, pode resultar numa espécie de desidentificação, roçando a despersonalização, o que por vezes se traduz num cenário dramático, caindo na vertigem confusional da circularidedade.  Referimos então à confusão de identidade dos sujeitos psicóticos, na qual o sujeito, e num movimento circular torna-se gémeo psíquico do outro por identificação projectiva. 

Todavia, com a situação de desidentificação, anteriormente evocada, pode-se retirar algo de proveitoso, o reforço da identificação idiomórfica, levando o sujeito adolescente a reforçar e a consolidar a sua própria identidade, permitindo a descoberta do self autêntico e a sua expansão identitária, num processo contínuo da construção do seu edifício egóico, invertendo desta forma o processo descrito no parágrafo anterior, portanto transformando-se a si próprio.  Na opinião de Coimbra de Matos, a aventura de partir só, onde a sua identidade se assume à medida que se esbate a identificação aos outros.  

 

 

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