Onde ficaram as crianças neste processo todo?
Assim, para podermos todos reflectir, ficam algumas ideias técnicas sobre o assunto.
Eu e o Outro
Para além da imagem que
o sujeito tem de si ao se reconhecer, importa ainda a imagem que o outro lhe
dá, como o define, não só pelo facto de que o outro é um espelho vivo, criador
e transformador, como também por captação e captura da identidade
atribuída. De acordo com Coimbra de
Matos, estamos então perante a identificação imagoico-imagética.
Esta identificação é
muito importante, na medida em que o Homem é um animal narcíseo, que se
vê ao espelho, e este reflecte aquilo que tem perante si. Desta forma, a imagem que transmite pode ser
promotora de evolução (desenvolutiva) e sanígena (produtora de saúde) se
a atribuição for correcta, como pelo contrário pode ser obstrutiva e patogénica,
desviante ou mesmo alienante quando distorce a verdade do sujeito, proveniente
de uma má/insuficiente leitura/interpretação e por insuficiência do seu estado
e dinamismo mental, ou por intenção malévola, paranóide ou rejeitante. Então, o sujeito, alvo de projecções, só pode
construir uma identidade falsa.
Este tipo de identificação deriva das mensagens e afluxos
inconscientes transmitidos pela projecção identificativa do objecto
identificador, do objecto que reconhece.
A identificação imagoico-imagética, leva à constituição do núcleo
primário da identidade, à primeira cristalização identificatória, a identidade
psíquica básica. A identificação
imagoico-imagética é uma identificação introjectiva precoce,
proveniente da interacção e da inter-relação com o objecto primário.
Na linha de pensamento de M.
Klein estamos perante uma sucessão temporal de introjecções positivas do
bom seio, ou na opinião de Coimbra de Matos o bom objecto parcial
primitivo, que permite ao sujeito a construção da imagem de si próprio, o
próprio Eu, a identidade. A esta
sucessão de introjecções, Bouvet chamou-lhes de introjecções
conservadoras. Por seu lado, Coimbra
de Matos considera mais correcto a designação de construtivas na medida
em que destinam a construir algo.
É a sucessão de introjecções que leva à construção da
identidade. Para tal, a construção do bom
objecto interno e total é uma importante fase no decorrer da evolução
psicológica. É com uma constituição deste
objecto interno total, caminhando em paralelo com a estruturação de um Eu
coerente e com limites bem definidos, em associação com uma estima de si
suficiente, segura, e plenamente assumida (um self isento de feridas narcísicas
abertas) que se atinge a relação de objecto genital, forma essa de o sujeito se
relacionar com o mundo que o circunda sem uma dependência excessiva dos
objectos reais e actuais e sem o risco iminente da perda de individualidade em
face dos abalos ou rupturas no seu sistema relacional concreto. Caso
contrário, e do ponto de vista da compreensão psicanalítica, a inconstância da
relação de objecto, pelo facto de não existir um objecto interno
suficientemente estável, será o prenúncio e assistiremos a uma intolerância à
frustração e à incapacidade de suportar a ansiedade, essência da passagem ao
acto. O
dinamismo psíquico do sujeito será caracterizado pela não elaboração mental da
frustração (patologia do imaginário) imposta pela realidade. Aquele objecto interno, que se pretende contentor
(Winnicott), tranquilizante (Bion), tomará uma tonalidade emocional altamente
persecutória, constantemente projectado e perseguido. A falha na interiorização desse mesmo objecto
interno condiciona um sentimento de depressão inconsciente, somente compensada
pelos comportamentos de instabilidade de fuga para a frente e, nos
melhores casos, pela recriação e procura dos objectos como um prolongamento e
acabamento do bom objecto interno, mas parcial.
Por recepção no
interior das formas visíveis e comportamentos observados o sujeito constrói a
sua própria imagem, designando-se como identificação idiomórfica, na
qual, e por aprendizagem directa, o sujeito tem a possibilidade de se mostrar e
mostrar o que faz. Este tipo de
identificação, que cedo se iniciou, mantém-se pela vida fora, considerada mesmo
como o retalho mais nobre, genuíno e fiel da identidade do sujeito. Todavia, é na fase da adolescência que se dão
as modificações mais importantes ao nível da identidade do próprio. A identidade idiomórfica acentua-se, são os
valores, os ideais, a aprendizagem do sujeito que o guiam e determinam a sua
identidade. Estes traços pessoais,
associados a uma educação-relação, convenientemente limitada, que promova e
facilite a autêntica expressão do self deixa espaço para a experiência, para o
erro, para as frustrações e também para o sucesso, permitindo ao sujeito
afirmar-se.
Numa terceira fase do
percurso da construção da identidade, se assim o quiser-mos considerar, surge a
identificação alotriomórfica, a qual e de acordo com Coimbra de Matos
consiste na identificação ao modelo.
É o objecto eleito, o objecto amado, mas também invejado, sob a
perspectiva de desejar ser, intojectando os seus atributos, quer sejam estes
reais ou imaginários, o Eu Ideal (Lussier).
Esta é a identificação mais conhecida e a única que a psicanálise
clássica e a psicopatologia dinâmica tradicional descrevem, sendo, de acordo
com Coimbra de Matos, como uma visão muito reducionista, uma vez que
limita o processo de construção da identidade à simples identificação ao
modelo, bem como, pelo facto de subestimar a capacidade diferencial e
diferenciadora, e acima de tudo criativa de cada sujeito.
Importa agora, não cair
no erro de colocar estes tipos de identificação num espaço limitado,
circunscrito, isolado e independente, mas sim intricá-los. Se a identificação imagoico-imagética é muito
importante e acompanha-nos para toda a vida, a identificação alotriomórfica
também não é menos importante, na medida em que pela cópia do modelo
existem casos muito felizes, mas tem o seu reverso, o Ego pode “vestir” várias
peles no decorrer do seu percurso criativo.
Esta situação ocorre,
não somente por uma cópia do modelo menos feliz, como também pelo facto de não
se respeitar, pela não consideração da individualidade própria da criança. Referimo-nos então, às mães que não se
preocupam e não se inquietam com a necessidade de evolução original do filho,
não se interrogando sobre os seus desejos, próprios e genuínos, prejudicando
seriamente a sua individuação (Mahler) e a formação de uma individualidade
própria, originando desta forma a constituição de um falso self (Winnicott),
a qual podemos designar como uma extensão da identidade das figuras parentais,
reflexo das falhas narcísicas destes, proporcionando ao sujeito uma vivência
emocional de frustração contínua, que se converte, frequentemente, e mais tarde
no período da adolescência, numa atitude de desprezo e violência perante
o modelo e a sociedade.
Numa vertente positiva,
e entendamos o Ego como um actor na procura do seu melhor argumento,
permite-lhe apelar ao seu imaginário e procurar ser melhor do que aquele que
lhe serviu de modelo, em suma, dá-lhe espaço para a criatividade. Na vertente negativa, pode resultar numa
espécie de desidentificação, roçando a despersonalização, o que por
vezes se traduz num cenário dramático, caindo na vertigem confusional da
circularidedade. Referimos então à
confusão de identidade dos sujeitos psicóticos, na qual o sujeito, e num
movimento circular torna-se gémeo psíquico do outro por identificação
projectiva.
Todavia, com a situação
de desidentificação, anteriormente evocada, pode-se retirar algo de proveitoso,
o reforço da identificação idiomórfica, levando o sujeito adolescente a
reforçar e a consolidar a sua própria identidade, permitindo a descoberta do self
autêntico e a sua expansão identitária, num processo contínuo da construção
do seu edifício egóico, invertendo desta forma o processo descrito no
parágrafo anterior, portanto transformando-se a si próprio. Na opinião de Coimbra de Matos, a
aventura de partir só, onde a sua identidade se assume à medida que se esbate a
identificação aos outros.
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