21.7.13

Operação relâmpago repete-se todos os dias na cozinha D'El Rei D. Dinis

Manuel Cerqueira comanda os guerreiros

Operação relâmpago: 1500 Bolos, mais uma dúzia de tabuleiros de miniaturas e outros tantos de salgados feitos com massa brioche, tudo feito em quatro horas e meia numa cozinha orientada por Manuel Cerqueira e os seus cúmplices António Farinha e João Caires. Esta é uma operação repetida todos os dias da semana, 365 dias por ano, na cozinha D’El Rei D. Diniz. Uma jornada para garantir que, às seis horas e meia da manhã, se possam preparar os pequenos-almoços dos primeiros clientes. Acaba-se a etapa dedicada à pastelaria fina. Depois, até ao meio dia, é tempo para dar aso à imaginação e cumprir as promessas feitas aos clientes: Decoram-se os bolos de montra, muitos deles a serem cravados de velas e dedicatórias. A maioria, verdadeiras obras de arte, de um bom gosto extremo e de encher o olho ao mais incauto.
Manuel Cerqueira é um pasteleiro que adora comer pastéis de nata, que introduziu a especialidade São Marcos no hábito de milhares portugueses, faz da cozinha a sua profissão há 36 anos e, apenas, dorme cinco horas por dia. O Manuel leva a vida como se trabalhasse de dia. Deita-se entre as 20 e as 21 horas, para despertar à uma da madrugada. Porventura, pelo sentido prático entre que é um trabalhador da noite por excelência e de quem tem família; mulher e duas filhas. Aos 51 anos, é seguramente um dos melhores da sua arte e é reconhecido por isso. São os clientes que o dizem.
Revista Festa - Como é que um pasteleiro, nos bastidores, sente o pulso dos clientes?
Manuel Cerqueira – “Numa casa destas, com tantos clientes de todas as idades e cada vez mais exigentes, acaba por ser mais fácil do que se imagina ter a percepção sobre o índice de satisfação. É que são os clientes que nos procuram. Isto é, que gostam de falar connosco, porque querem saber o que comem e as alternativas que podem ter, para fazer uma festa, por mais simples que seja. Se os consumidores são cada vez mais exigentes, não será menos verdade que hoje é mais fácil saber o que gostam e se apreciam o nosso trabalho”.
RF – Tem a noção que orienta uma cozinha que faz dos bolos mais admirados? Que tem clientes que vêm de longe para comer aqui um simples pastel de nata, croissant, duchese ou um são marcos?
Manuel Cerqueira, com uma montanha de fatias de flamengo na mão - a completar a montagem de uma fila de merendas - esboça um sorriso e não perde a sua humildade: “Tenho três certezas. Que jamais seriamos bons pasteleiros se fizéssemos disto, exclusivamente uma profissão. Que sou devoto à causa e tenho imenso carinho pelo que faço. E sou exigente na organização, na higiene, na qualidade das matérias-primas quase todas naturais, em contraciclo com a cada vez maior utilização dos pasteurizados, e na aprendizagem”.
RF – Hoje, existem escolas, duas ou três de referência internacional. Portanto, temos pasteleiros formados, aparentemente qualificados. Mas na maioria das vezes, verifica-se esse esforço no acabamento, mais que no conteúdo. Estamos perante uma nova era, uma espécie de pastelaria gourmet. E deixamos de perceber o que comemos verdadeiramente. Corre-se o risco de optar pelo que é bonito em detrimento do que é bom?
MC – “Podemos sempre juntar o melhor de dois mundos. Eu não tive escola. No meu tempo, simplesmente não existia formação no sector. Precisei de anos para aprender o que sei, os métodos de produzir em tempo útil, mantendo o formato tradicional. E no aspecto artístico continuo a fazê-lo. A criatividade quase não tem limites. Eu não me envergonho do que consigo fazer. Encontram-se à vista de todos, em bolosecoriscos. blogspot.pt. Dedico grande parte do meu tempo à aprendizagem de técnicas de confeitaria e confecção de bolos”.
RF – É mais fácil para quem chega agora à profissão?
MC – “Não creio que seja. A realidade do trabalho diário é diferente da escola. Quando se entra numa cozinha como esta corre-se o risco de dar alguns tropeções. É preciso ter um elevado sentido organizacional e o discernimento em comungar a confecção tradicional com o tempo disponível para o fazer. Como viu, temos de dar tudo por tudo num curto espaço de tempo. Estas primeiras cinco horas são passadas debaixo de uma enorme pressão de trabalho. Esta característica nem sempre está ao alcance de todos, por mais qualificados que sejam. Isto não tem semelhança com a cozinha de um restaurante gourmet que serve por encomenda e onde há receitas que começam a ser confeccionadas de véspera. No El Rei D. Diniz, é tudo feito no próprio dia. É a nossa marca. Em troca, os clientes dão-nos a sua preferência”.

Na cozinha D’El Rei D. Diniz, o trabalho manual é intensivo. À arte e engenho, juntam-se apenas a força de braços, as batedeiras, os tachos de cobre, as facas, tesouras, espátulas, as formas e os tabuleiros.
 

Às quatro horas da manhã, juntam-se à equipa duas assistentes que desatam a limpar tudo. Fazem-no repetidamente de 30 em 30 minutos, de cada vez que acaba uma fornada. Pelo meio, ordenam o final da linha de produção. É como se estivéssemos numa fábrica de automóveis. Os tabuleiros estacionam dentro da pastelaria. Minutos depois, Manuel Cerqueira passa em revista a parada de bolos. Ajeita os tabuleiros e recolhe um ou outro bolo com menor aparência, ligeiramente amachucado.
Na cozinha, lavam-se os tachos de cobre que não são precisos, com vinagre e sal para evitar o verdete e arruma-se tudo o que não será necessário à próxima etapa.
RF – Por vezes fica-se com a sensação que nada se passa. As pedras das mesas subitamente ficam limpas. Depois, atira-lhes porções de farinha e recomeça o frenesim. É sempre assim?
MC – “É! Acredite que não é por estar aqui. Eu obrigo-me a estes procedimentos. A higiene é sinónimo de segurança e de qualidade do produto final. Orgulho-me disso. É uma marca nossa que, certamente, aumenta a confiança dos clientes. É gratificante que as reclamações sejam reduzidas a zero”.
RF – Mas é complicado gerir a produção com estes procedimentos?
MC – “É uma questão de método e de criar rotinas certas. Servimo-nos de poucos utensílios. Aqui o trabalho manual é intensivo. É uma fábrica onde se valorizada a mão-de-obra. Sujamos as batedeiras, tachos de cobre, formas, tabuleiros, facas, tesouras e espátulas e alguns recipientes de plástico ou inox”. 

 
Apesar da cada vez maior industrialização das matérias-primas, na cozinha do Manuel Cerqueira quase não há espaço para os produtos pasteurizados, antes para os ovos inteiros, leite, natas, açucares, farinhas, frutos secos e aromas naturais.
 

No relógio, batem as seis horas da madrugada. Lá fora, já é dia. Na cozinha de Manuel Cerqueira é tempo para acabamentos dos bolos mais cobiçados: Os que se recheiam com chantili, uma referência D’El Rei D. Diniz. Tem uma espessura e açúcar quanto baste e um surpreendente travo a baunilha. Pois é, tudo é milimetricamente misturado e em tempo certo. Não há lugar a farinhas, amidos, margarinas ou manteigas nem a aromas artificiais. Este é o segredo de um “recheio” que serve também esses exímios semifrios conhecidos por São Marcos que celebrizaram Manuel Cerqueira e a pastelaria Presidente há mais de 30 anos.
Faziam filas enormes para entrar na Presidente”, recorda Manuel Cerqueira que precisa: “Vendiam-se centenas de São Marcos e a maioria dos clientes vinham de longe. Agora, banalizou-se o doce e, em alguns casos, até se adulterou. Quando se ganha fama, logo aparece quem não sabe copiar”.
RF – Mas qual é o segredo do São Marcos?
MC – “Este bolo semifrio, fantástico, nasce de uma ideia simples como quase tudo o que é bom. Uma pasta de pão-de-ló serve para fazer a base e o topo. Polvilha-se o topo de açúcar fino e queima-se com o ferro, tal como se faz em nossas casas. Depois, compõe-se o recheio á força da espátula e coloca-se o topo que leva uma pincelada de geleia para abrilhantar e os enfeites que se quiserem… É simples, não é?! Vamos experimentar”.
RF – Mas afinal onde nasceu a esta iguaria?
MC – “Há quem diga que foi na Vila de São Marcos, na Sicília, em Itália. A única coisa que sei é que foi um espanhol que viria a ser meu patrão que introduziu o bolo em Angola e depois o trouxe para Portugal, na década de 70 do seculo passado. E eu comecei a fazê-lo. Daí ter ficado ligado ao seu aparecimento em Portugal”.
 
“Em casa de ferreiro espeto de pau” é um ditado popular que se aplica a Manuel Cerqueira: “Em casa é a minha mulher que faz os bolos. Eu cozinho apenas. Aliás, também gostava de ter sido cozinheiro
 
Uma das diferenças do São Marcos está na paciência de queimar a pasta de pão de ló artesanalmente.
 
Acabamentos dos bolos com massa brioche, antes de entrarem no forno
 
José Maria Pignatelli em Revista Festa (edição dee Julho de 2013)
 

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