9.10.12

Justiça ferida

A sociedade portuguesa desconfia cada vez mais da Administração pública e vice-versa. A justiça é um dos pilares fundamentais de um Estado de Direito e a democracia devia ser isso mesmo. Todos sabemos que a Justiça acaba por se tornar diferenciada entre ricos e pobres. O poder financeiro de cada um de nós faz toda a diferença: utilizar todos os mecanismos legislativos da justiça custa dinheiro, muito mesmo. Estranhamente o avançar da democracia tornou a nossa justiça mais vulnerável: Hoje, ao longo de quase quatro horas, percebi quanto é desconsiderada, vulgarizada quase actividade marginal.
No Tribunal Criminal de Loures, o dia começou com julgamentos marcados por quatro juízes para apenas três salas de audiência. Um ficou de fora: tinha quatro julgamentos sumários e começou dez minutos antes das onze horas quando pressupostamente devia ter iniciado os trabalhos pelas 9 horas e 30 minutos. A juíza não conseguiu concluir dois deles e mandou lavrar em acta, precisamente essa ocorrência que tinha estado a aguardar que uma das salas ficasse liberta, mostrando inclusivamente indignação pelo sucedido.
Mas o mais burlesco estava para acontecer: Quatro julgamentos e três réus e mais uma meia dúzia de testemunhas. Os réus sentaram-se todos dentro da sala ao mesmo tempo, lado a lado independentemente da especificidade dos processos: Uma suposta agressão a uma médica, um suposto furto e um autarca por ter permitido a permanência de cartazes de propaganda política do seu partido, a menos de 50 metros de mesas de voto nas “Autárquicas de 2009”.
E tal qual como se estivessem na fila de uma caixa registadora de supermercado, a aguardar a vez para pagar a conta das compras depositadas sobre o tapete rolante.
Pelo meio, ainda foram ouvidos três agentes da divisão de Investigação Criminal da PSP, num processo de 2006 e sobre buscas realizadas no início de 2007 que se vieram a revelar dispensáveis por não constarem do próprio processo, por inadmissível que possa parecer. O réu deste processo não apareceu pela terceira vez e foi-lhe emitido mandado de detenção.
Como se isto já não revelasse a precaridade da Justiça, eis o inexplicável: um arguido acompanhado por dois agentes da PSP conhece a sua advogada oficiosa e reúne com ela em pleno corredor junto às salas de audiência, aos ‘ouvidos de todos’ e perante as partes interessadas no processo… É certo que os ânimos não se exaltaram, mas por mero acaso. Ora num tribunal recente com uma arquitectura moderna, não existe uma sala onde estas reuniões possam ocorrer em maior privacidade e sem o risco de provocar conflitos desnecessários e jamais devem ocorrer nos tribunais.
Uma manhã, mais de quatro horas, passadas num tribunal permitem: perceber como a nossa Justiça é tratada; como os intervenientes se sujeitam aos condicionalismos da falta de recursos humanos e estruturais e à desconsideração a que são votados pela sociedade, pelos próprios interessados tantas vezes as vozes da contestação. Aconteceu uma manhã que espelha a fragilidade de um sistema que jamais conseguirá ser justo, porque não permite uma audiência onde se reflitam os factos precisos e a própria actividade intelectual de quem alega e avalia. Vive-se a contrarrelógio e ainda se ouve dizer que todos mentem com os dentes que têm e que não têm.
De saída, um piscar de olhos aos éditos: dois deles fixam datas para devolução de bens aos proprietários, estranhamente uma arma branca (navalha) não caracterizada e uma outra navalha com cabo em madeira e metal de cor amarela medindo 22 centímetros de comprimento.
O País precisa que se faça uma reflexão profunda sobre toda a sua estrutura social. Os portugueses não devem aceitar estas práticas como acasos, mas sim como factores da capitulação de um regime. Não dando grande relevo ao hastear da bandeira nacional ao contrário, no passado dia 5 de Outubro, na Praça do Município, teria a legitimidade de a entender como infeliz, por ser também um inequívoco sinal de sujeição. Esta manhã, seguramente, repete-se quase diariamente de Norte a Sul, a propósito do despacho de milhares de processos que se acumulam na teia da burocracia.
José Maria Pignatelli

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