25.10.10

Os Saloios 2

Deixem-nos vê-los sempre como ainda os vemos, subindo a Calçada de Carriche, sobre os seus burrinhos, ambas as pernas banboleando para o mesmo lado, aberto a todo o pano o enorme guarda chuva de varetas de baleia e cabo da grossura dum cabo de vassoura, findando em ponteira de reluzente latão e forro azul, com sua orla estampada de florinhas brancas; os pés folgados nas botas de grossa sola cosida e cano largo e curto, de couro amarelo com o carnal para fora. Elas, com as saias fugidas da terra um palmo, de beatilhas alegres,, os casaquinhos de chita clara, o maior e melhor lenço de ramagens caindo dos ombros em mantelete, cruzando as pontas à frente e entalando-as no cós da saia, o lenço da cabeça de uma cor unida e barra enramalhada, desatado sempre durante as caminhadas, atado logo, em nó solto sob o queixo à entrada na cidade. Eles com a justa calça e a jaqueta de bombazina ou serrubeco castanho amarelado, a camisa de cavalim muito branco, a cinta negra ou roxa de mil voltas, negro o barrete quase sempre, e algumas verde, orlado de vermelho....
Deixem-nos vê-los sempre, como ainda os vemos, desatrelar o gado das carroças à porta das estalagens e aliviar os burros da carga, pô-los à manjedoura, e depois de terem andado por casas e lojas de fregueses e freguesas, espalharem-se pelas ruas e travessas da sua predilecção, embasbacando diante das montras de ourives na Rua Nova da Palma, na tentação irresistível dos cordões e correntes de ouro, apalpando as fazendas penduradas à porta das lojas da rua dos Fanqueiros, considerando a grossura das solas e a flor do cabedal das botas que só para eles se vendem ali ao Arco do Marquês do Alegrete, ou então lá em baixo, aos Remolares e a S. Paulo, parados, de boca aberta, no Largo de S. Domingos, a entreter-se com o palavreado dos charlatães
que tratam de vender os seus sabonetes para tirar nódoas e os seus frasquinhos de remédio contra as dores de dentes e que toda a gente cai em comprar menos o saloio!... quebrando a enfadonha monotomia urbana com a rusticidade que se desfere da sua face morena e fortemente corada, em maçã camoesa, onde brilha o vivo olho de cereja preta; da paixão pela cor com que propendem para os vermelhos ardentes, os azuis luminosos, os amarelos açafroados, os verdes intensíssimos, na tinturaria das suas roupas; da simplicidade dos seus hábitos, em que só há amor ao trabalho, amor da saúde e amor da terra; da sua alegria... que enche de graça os arraiais saloios...
Tragam-nos o estrangeiro, mas não nos levem o saloio!...

Texto de Alfredo Mesquita publicado na Ilustração Portuguesa em 1907

Nota: o barrete verde era só para os rapazes solteiros.

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